“Pater
omnipotens Dominum super omnes ad dexteram”
“O pai
todo-poderoso, senhor acima de todos, está à direita”
in Livro aberto
do painel do Infante
“Porque não há
cousa oculta que não haja de manifestar-se,
nem escondida
que não haja de saber-se e vir à luz”
Evangelho Segundo S. Lucas – 8:17
Quando contemplamos os
Painéis pressentimos neles a existência de um enigma que nos atrai e que nos
leva a tentar a descodificá-lo. Existe nesta pintura um mistério que ainda não
foi resolvido, apesar da publicação de inúmeras obras e artigos que tentaram
desvendá-lo. A persistência desse segredo contribui para o constante fascínio
que os Painéis exercem sobre nós.
Recorremos
esporadicamente a citações de algumas obras já publicadas por outros investigadores.
Reconhecemos que sem o seu labor não nos seria possível avançar com a nossa
proposta de interpretação. Temos consciência no entanto que, pelo facto de ser
inovadora em alguns aspectos e por expor uma teoria que vai contra o consenso
geralmente aceite sobre o tema deste políptico, possa sofrer de imediato as
mais diversas críticas O presente estudo não pretende opor-se a qualquer uma
das teses já publicadas.
Algumas
das nossas identificações coincidem com as daqueles autores porque, ao se fixar
o tempo histórico retratado no Painéis, é natural que as figuras mais notáveis
desse tempo apareçam na pintura e que possa haver, por isso, um alinhamento
nessas identificações. Contudo nestes casos procurámos, mesmo assim, apresentar
algo de novo que reforçasse essa identificação. Noutras situações as nossas
propostas são inéditas.
Repetimos algumas vezes,
ao longo deste trabalho, descrições de determinados acontecimentos históricos,
nomeadamente aqueles que culminaram nas cortes de Lisboa (1439) e na batalha de
Alfarrobeira (1449). Este facto deveu-se à necessidade de melhor justificar as
propostas de identificação que fizemos para algumas figuras que intervieram, de
modo diferente, nesses mesmos acontecimentos.
De referir ainda que
utilizámos ao longo deste trabalho as denominações pelas quais os painéis são
geralmente conhecidos e que foram estabelecidas em 1910 na obra “O Pintor Nuno Gonçalves” de José de
Figueiredo.[1]
Quem analisar os Painéis
com algum detalhe, acaba por perceber que há algo mais para além do que é
perceptível à primeira vista. Este conjunto de pinturas contém mensagens
escondidas que só o pintor e doadores poderiam facilmente compreender. Estas
devem ser procuradas, identificadas, decifradas e interpretadas no contexto
histórico em que foram idealizadas. Umas mensagens serão mais claras e óbvias
enquanto outras serão mais subtis e ocultas. Existem pistas espalhadas nos
Painéis que nos podem auxiliar na compreensão do significado profundo da obra e
descobrir os temas que lá estão pintados. A dificuldade está em encontrá-las,
descodificá-las e interpretá-las.
Não foi por acaso que o
pintor inseriu uma série de objectos que são estranhos e/ou apresentados de um
modo fora do comum. Estão neste caso, por exemplo, no painel dos Frades a
caixinha preta e a tábua com olhais; no painel dos Pescadores a rede que os
envolve; no painel do Infante a manga anormalmente larga da figura feminina
mais jovem e um livro onde está inserida uma mensagem camuflada; no painel do
Arcebispo uma corda enrolada com nós, um fio com uma medalha enfiado no barrete
de um cavaleiro e um barrete dividido ao meio mas unido por quatro laços; no
painel dos Cavaleiros um cavaleiro que segura a espada pela extremidade e não
pelo punho; no painel da Relíquia um caixão e um livro aparentemente ilegível.
Para se entender o
significado dos Painéis temos que analisar em primeiro lugar o seu conjunto,
depois avançar com hipóteses sobre o significado da pintura, enquadradas no seu
tempo histórico e, finalmente recorrendo às pistas atrás referidas, perceber a
razão da sua existência. Depois de decifrados os assuntos há que identificar as
personagens enquadrando-as nas representações cénicas expostas, tendo por base
os factos históricos que as possam suportar.
Não visualizamos nos
Painéis qualquer comemoração em honra das campanhas militares do norte de
África ou da sua preparação para as mesmas. O número de figuras militares é
reduzido face ao total das sessenta personagens presentes. Esta obra não tem o
carácter bélico patente nas tapeçarias de Pastrana, estas sim comemorativas das
vitórias norte-africanas de D. Afonso V. A presença das personagens com
armaduras remete-nos para um outro acontecimento militar.
Não se vê, igualmente, a
existência de qualquer acto de veneração em direcção à figura santificada. A
assembleia não está ali reunida para lhe prestar culto. O santo está presente
apenas como convidado, diríamos hoje, para presidir a dois actos. É apenas um
intermediário com um papel relativamente secundário no contexto da composição.
O santo não será a peça mais importante ou fulcral na decifração do enigma dos
Painéis. Cremos até que a sua colocação em posição de destaque teve o intuito
de desviar as atenções, de modo a que o assunto da pintura não ficasse tão
evidente.
Vislumbra-se ali uma
atmosfera de amargura que o pintor procurou ilustrar, de acordo com as
indicações dadas pelos doadores. As figuras estão retratadas com um ar de
recolhimento, de gravidade e de mágoa. Aparentemente a assembleia transmite uma
certa rigidez, o que contudo é negado pelos pequenos movimentos executados por
algumas figuras. Há uma evocação triste que perpassa por todas as personagens,
cujas presenças se associam ao tema principal da pintura: perpetuar a memória
de uma pessoa e/ou facto que teve um impacto profundo nos doadores
Só descortinamos dois
acontecimentos, que ocorreram nos meados do século XV, que atingiram o carácter
de tragédia ao nível da família real e que possam justificar um conjunto de
painéis desta dimensão e qualidade: o cativeiro do infante D. Fernando, na
sequência da conquista falhada de Tânger em 1437 e a sua morte em 1443, e o
falecimento do seu irmão mais velho, o infante D. Pedro, na batalha de
Alfarrobeira em 1449. As lutas fratricidas ou guerras civis deixam, muitas
vezes, marcas mais profundas do que aquelas travadas contra forças
estrangeiras.
Defendemos que o tema
principal dos Painéis seja a reabilitação da memória do infante D. Pedro, que
se encontra retratado no local mais importante do políptico, isto é, na figura
do cavaleiro com um joelho no chão que ocupa o primeiro plano do painel do
Arcebispo.
Nos Painéis estão
representados, como iremos expor mais adiante, não só os apoiantes mais
próximos deste infante mas também os seus familiares mais chegados.
Após se perceber a razão
da existência da pintura, mais fácil se torna procurar e propor identificações
para as figuras principais. Procurámos sempre que possível, e de modo a
fundamentar melhor a nossa proposta, identificar uma personagem tentando fazer
corresponder um qualquer detalhe ou pormenor da sua figura com os relatos
extraídos das crónicas coevas, não esquecendo a proximidade que algumas tiveram
com o infante D. Pedro. A colocação de muitas personagens lado a lado,
mostrando entre elas uma certa afinidade, assim como o seu posicionamento
relativo e a proximidade/associação com um objecto são factores que também não
devem ser descorados quando se analisam os Painéis.
Estão retratadas
personagens vivas conjuntamente com outras já falecidas. Este facto era usual,
embora não frequente, na pintura desta época. No caso dos Painéis até é
possível que a maioria das personagens principais já tivesse morrido e que a
figuração dos vivos seja claramente diminuta. Esta situação justifica-se ainda
mais quando se está perante uma obra cujos doadores, ainda vivos, evocam e
reabilitam a memória de D. Pedro.
A nossa perspectiva pode
ser discutível, mas as conclusões que apresenta, baseadas em factos históricos,
tem a suportá-la dois tipos de documentos: a própria pintura e os relatos das
crónicas que confirmam o que está exposto no políptico. O documento mais
importante e verdadeiro, para se decifrar e entender o significado desta obra,
continua a ser ela própria. Foi aqui que encontrámos os indícios e as pistas
que nos levaram até à elaboração da presente proposta de interpretação.
Este tipo de abordagem
já tinha sido defendido por Almada Negreiros: “E, enquanto outros acreditavam apenas em documentos e os rebuscavam e
tresliam, o melhor documento esteve sempre à vista publicamente no único elemento
existente do todo da obra, as seis tábuas.” [2] Afonso Botelho vai mais longe na sua
proposta: “Dentro do método decifrador,
pareceu-me que o processo mais eficaz, porque mais coerente com as premissas
aceites, seria o de encontrar e interpretar o documento autêntico, ou seja, o
que no quadro, e não fora dele, pode considerar-se como documento apresentado.
Ora, o que realmente se apresenta como frase lógica e intencional é aquele que
salta à vista de quem o procura, ou mesmo de quem o não procura: o livro aberto
para a personagem régia. Ali parece estar o documento dos documentos, aquele
que o próprio autor do quadro escolheu para assinalar alguma relação factível.”
[3]
A interpretação que propomos, elaborada com espírito
crítico, analítico e lógico pretende ser sintética e objectiva e visa
contribuir, com novas abordagens e caminhos de investigação, para a solução do
enigma chamado Painéis