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terça-feira, 23 de setembro de 2014

9. O CAIXÃO E O PEREGRINO


 No painel da Relíquia vê-se um conjunto formado por um velho e por um caixão. Num primeiro olhar até nos parece que o idoso está a carregar com o caixão às costas. Não é por acaso que estão assim representados. Há ali uma mensagem que nos está a ser transmitida, que tentaremos perceber e decifrar.

Defendemos, tal como Reynaldo dos Santos[1] que a “figura de aspecto humilde, barrete, faixa a tiracolo e apoiado a um bordão, representa um peregrino, segundo a iconografia habitual” ou como Jaime Cortesão[2], que “o velho da sacola, bordão e carapuça representa um peregrino…”. Existem semelhanças entre esta imagem e outras que ilustram peregrinos incluídos em obras deste período (figs.46[3] e 47[4]). Lá estão as sacolas a tiracolo, os bordões de apoio e as carapuças ou barretes. 
           
                                        Fig.46                                       Fig. 47




As imagens de caixões não são frequentes nas pinturas contemporâneas dos Painéis. A presença de um caixão aberto, com o significado de um enterro incompleto, só se compreende por estar associado ao tema geral da pintura. Existem dois episódios históricos que podem justificar a sua figuração: a morte do Infante Santo em Fez em 1443 e a do seu irmão, o infante D. Pedro, na batalha de Alfarrobeira em 1449 cujos corpos não tiveram logo um enterro condigno.

O corpo do infante D. Fernando permaneceu pendurado durante vários anos nas muralhas da cidade marroquina até que os seus restos mortais foram resgatados e sepultados na Batalha. No caso do corpo de D. Pedro, como veremos a seguir, observaram-se três enterros e os seus ossos realizaram diversas viagens até que encontraram o seu descanso final, também no mosteiro da Batalha.

Deduz-se assim que a representação de um caixão vazio associado a um peregrino só pode estar relacionada com o infante D. Pedro.
Após a derrota na batalha de Alfarrobeira em 20 de Maio de 1449, o cadáver do infante permaneceu no campo da batalha tendo sido transferido à noite para uma casota, onde ficou durante três dias na companhia de outros corpos. Repare-se como Rui de Pina descreveu friamente esta situação: “O corpo do Infante jouve todo aquelle dia sem alma descuberto no campo á vista de todos, e sob a noite o lançaram homens vis sobre um pavés, e o metteram hi logo em uma pobre casa, onde entre corpos já vazios d'almas e fedorentos, jouve tres dias sem candea, nem cobertura nem oração, que por sua alma publica se dissesse nem ousasse de dizer...” [5]. Passados estes dias o rei permitiu o seu transporte para a igreja de Alverca onde “foi vilmente e com grande desacatamento soterrado[6].

O tratamento dado ao corpo do ex-regente foi objecto de críticas e de condenações, em particular por parte da sua irmã. Como já referimos em capítulo anterior, a duquesa enviou a Portugal o embaixador Jean Jouffroy com a missão de mostrar ao rei a sua indignação e de lhe pedir uma sepultura digna para os restos de D. Pedro, ou então “que lhe mandasse dar os seus ossos para os levar a Borgonha, onde a duquesa sua irmã lhe daria sepultura honrada e merecida[7].

D. Afonso V, com medo que isto acontecesse, deu ordens (em Janeiro de 1450) para que os restos mortais do seu sogro fossem desenterrados e enviados para a igreja do castelo da Abrantes “cuja guarda e segurança encomendou a Lopo de Almeida[8].
Em Fevereiro de 1452, antes do nascimento da sua filha, D. Joana, a rainha D. Isabel faz um testamento onde a certa altura pede ao rei, seu marido, que “nestes Moesteiros seja sepultada a ossada do Senhor Infante meu Padre, cuja alma Deos aja, assim honradamente como pertence a hua tal pessoa como ele he” [9]. A rainha está a sugerir que seja escolhido ou o mosteiro de Santo Elói ou de S. Bento de Xabregas. Conclui-se assim que nesta data os ossos do ex-regente ainda estavam em Abrantes.

Existe um segundo testamento de D. Isabel, não datado, incompleto e bastante semelhante ao anterior, que terá sido feito antes do nascimento do futuro D. João II (Maio de 1455). Aqui já refere “quanto eh aa ossada do Senhor Infante meu Padre que Deus haja, a qual está em Santo Eloy, mando aos ditos meus Testementeiros, que requeiraõ a ElRey meu Senhor per hum alvará seu que tenho, que lhe praza de se levar aa Batalha, segundo forma do alvará, e ali seja levado per aquelas pessoas que ElRey ordenar, e elles vaõ com ella, e lhe façom todo aquelo que segundo rezaõ se deve fazer a tal pessoa[10]. Confirma-se assim que nesta data os restos mortais de D. Pedro já tinham sido traslados para o mosteiro de Santo Elói.

Rui de Pina dá uma versão diferente destes factos escrevendo que a rainha, na sequência do nascimento do príncipe D. João, ao verificar o efeito apaziguador que este acontecimento teve sobre D. Afonso V, “requereu e pediu a El-Rei que os ossos do Infante seu Padre como lhe tinha prometido não andassem provando tantas e tão vis sepulturas, e quisesse que fossem trazidos a Lisboa, e dali os levassem ao mosteiro da Batalha.[11] O rei cedeu perante esta solicitação pois “os ossos do Infante foram logo trazidos ao mosteiro da Trindade de Lisboa, e daí ao mosteiro de Santo Elói, onde foram em grande triunfo e muita veneração postos em tumba[12].

O relato verdadeiro é sem dúvida o da rainha D. Isabel que viveu pessoalmente a angústia de os restos mortais do seu pai não terem tido o devido descanso eterno, enquanto a descrição de Rui de Pina é muito posterior, baseado eventualmente em documentos dispersos. Fica a interrogação se os ossos do infante D. Pedro vieram logo para Lisboa após o nascimento de D. Joana. Cremos que sim, porque o modo como a rainha refere o facto no segundo testamento “a qual está em Santo Eloy” evidencia que este acontecimento já teria ocorrido há algum tempo. Rui de Pina acrescenta no entanto que as ossadas terão passado pelo mosteiro da Trindade.

O infante D. Henrique ficou responsável pela transladação dos restos mortais do seu irmão. Estes percorreram as ruas de Lisboa numa “solene procissão de Bispos e cabido, e muitas ordens e clerezia[13], tendo saído do mosteiro de Santo Elói, passaram pela Sé, rua Nova e porta da Mouraria. Rumaram então para o mosteiro da Batalha, onde “El-Rei e a Rainha com solene procissão acompanhada de muitos prelados, abades e clerezia e de muita e nobre gente saiu a recebê-la[14].
Finalmente “com as devidas exéquias e cerimónias” os ossos do infante D. Pedro tiveram “a sepultura que na Capela de El-Rei D. João seu padre lhe fora apropriado. [15] 
Reconstruímos de seguida uma provável peregrinação dos restos morais do infante:
  • 20 de Maio de 1449, morre em Alfarrobeira
  • À noite é transferido para uma casa ali perto
  • Três dias depois é enterrado na igreja de Alverca
  • Janeiro de 1450, é desenterrado e levado para a igreja do castelo de Abrantes onde é novamente enterrado
  • Fevereiro 1452, os restos mortais são levantados e seguem para o mosteiro da Trindade em Lisboa
  • Abril 1452 (?), os ossos são transferidos para o mosteiro de Santo Elói, também em Lisboa
  • Novembro 1455 (?), as ossadas são finalmente trasladadas para o túmulo que lhe estava destinado na capela do Fundador no mosteiro da Batalha.

Na nossa perspectiva o caixão vazio mostra que os sucessivos enterros de D. Pedro não significaram nada, porque nenhum deles ocorreu em local digno. É como se não tivessem acontecido, isto é, foram todos em vão. Aliás, como muito bem assinala José de Figueiredo[16], mas noutra proposta de interpretação, “O caixão é representado aberto, mas o pintor, para que não houvesse dúvidas quanto a ter sido ele já aproveitado, fixou, o mais realisticamente possível, no rebordo das suas tábuas laterais, vestígios de pregos arrancados. A madeira mostra, não só as cavidades em que eles estiveram, mas ainda o lascado resultante da violência com que foram tirados.” (Fig.48) [17]
                                                       
Fig.48

O peregrino já idoso simboliza assim os percursos que os restos mortais do infante D. Pedro efectuaram ao longo dos anos.

A mensagem subtil que ali está inserida, e que nos é transmitida, é mais uma condenação relativa ao tratamento que foi dado ao corpo do infante das Sete Partidas. No capítulo anterior já tínhamos analisado este protesto na figura do embaixador Jean Jouffroy.

O peregrino está alheado do que acontece nos painéis centrais e vira seu corpo em direcção do deão de Vergy. A sua pose e olhar ausente transmitem a sensação de que está a escutar as palavras que o embaixador da Borgonha está a pronunciar.

O painel da Relíquia é pois o local do Políptico onde um dos doadores manifestou, através de mensagens veladas e com a colaboração do pintor, a sua forte oposição àqueles acontecimentos. A percepção destes recados pelos observadores da pintura, nomeadamente D. Afonso V, terá estado na origem, mais tarde, da ocultação dos Painéis.








[1] SANTOS, Reynaldo dos. Nuno Gonçalves, Londres, 1955, pág. 8
[2] CORTESÃO, Jaime. Os Descobrimentos Portugueses, 3º vol., Lisboa, 1990, pág. 543
[3] Van EYCK, Hubert e Jan, A Adoração do Cordeiro Místico, painel “Os Santos Peregrinos”1432, Catedral Saint-Bavon, Gand, Bélgica
[4] BOSCH, Hieronymus. Tríptico do Juízo Final, 1504-08, Akademie der Bildenden Künste, Vienna, Áustria
[5] PINA, Rui de - Op. cit., Vol II, cap.CXXIII, pág.104
[6] PINA, Rui de - Op. cit., Vol II, cap.CXXIV, pág. 110
[7] PINA, Rui de - Op. cit., Vol II, cap.CXXIX, pág.118
[8] PINA, Rui de - Op. cit., Vol II, cap.CXXIX, pág.118
[9] SOUSA, António Caetano de - Op. cit., pág. 52
[10] SOUSA, António Caetano de - Op. cit.,  pág. 54
[11] PINA, Rui de - Op. cit., Vol II, cap.CXXXVII, pág. 137
[12] PINA, Rui de - Op. cit., Vol II, cap.CXXXVII, pág. 138
[13] PINA, Rui de - Op. cit., Vol II, cap.CXXXVII, pág. 137
[14] PINA, Rui de - Op. cit., Vol II, cap.CXXXVII, pág. 137
[15] PINA, Rui de - Op. cit., Vol II, cap.CXXXVI, pág. 135
[16] FIGUEIREDO, José de - O Pintor Nuno Gonçalves, Lisboa, 1910, págs. 34-35
[17] Cortesia Wikipedia