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terça-feira, 23 de setembro de 2014

12. A DISPOSIÇÃO DOS PAINÉIS

Cremos que os Painéis foram idealizados para serem expostos em três paredes, o que permite aliviar a carga visual associada ao modo como os Painéis estão presentemente apresentados no MNAA, isto é, numa única parede. Garante a perspectiva global dada pelos ladrilhos visíveis em cada painel. Permite uma maior envolvência das personagens dos painéis laterais nas cenas principais representadas nos painéis de maior dimensão. Permite também, eventualmente, explicar a razão por que o painel dos Pescadores tem uma iluminação contrária à dos outros painéis. Será que havia, no local para onde foram concebidos, uma janela colocada entre este painel e o dos Frades que justificasse uma irradiação diferente?


Fig.62


Com esta arrumação consegue-se um conjunto de quatro trípticos (fig.62), cada um com 30 figuras:

I+P+F     A+C+R     I+C+R     A+P+F


(cada letra representa a inicial do nome pelo qua cada painel é habitualmente conhecido).

Criam-se assim dois trípticos imaginários:
Cavaleiros - Infante - Relíquia
Pescadores - Arcebispo - Frades

No primeiro tríptico está patente a ideia de ausência e de morte: a rainha D. Isabel anuncia que em breve partirá deste mundo; o deão de Vergy disserta contra o enterro dado ao infante D. Pedro; a imagem do infante D. Fernando, morto em Fez, aparece desenquadrada no meio dos outros. A cor vermelha sobressai no conjunto destes três painéis.

No segundo predominam as figuras que estiveram mais próximas do infante D. Pedro, tanto nos acontecimentos que o levaram à regência, assim como na batalha de Alfarrobeira: D. Álvaro Vaz de Almada, amigo de longa data; os filhos D. Jaime e D. Pedro; infante D. João, irmão; D. Afonso Nogueira, cónego do convento de Santo Elói; Dr. Diogo Afonso Mangancha, jurista; Lopo Fernandes, cidadão de Lisboa; D. Estêvão de Aguiar, abade de Alcobaça; os pescadores de Buarcos. Neste tríptico predominam as cores neutras.

Esta disposição permite que se estabeleça uma troca de olhares na diagonal entre as figuras dos painéis mais pequenos e aquelas dos de maiores dimensões.

Repare-se como a duquesa D. Isabel, depois de ter observado a reacção do seu embaixador Jean Juffroy, dirige o seu olhar crítico em direcção ao sobrinho. Veja-se como o deão de Vergy fica consternado perante a atitude de D. Afonso V, que lhe vira as costas e se mostra insensível aos argumentos utilizados para o demover da sua posição relativamente ao assunto que o trouxe a Portugal. Observe-se como D. Estêvão de Aguiar e os pescadores de Buarcos dirigem os seus olhares em direcção ao painel onde se encontra o duque de Coimbra que apoiaram, respectivamente, nos movimentos que o levaram à regência e em Alfarrobeira.

A arrumação que propomos permite igualmente o estabelecimento de interacções entre as personagens dos painéis menores colocados frente a frente.

Está neste caso Frei João Álvares que se encontra prostrado no primeiro plano do painel dos Pescadores. O seu olhar, virado para o observador da pintura, está de facto dirigido para o painel em frente onde se encontra o seu antigo amo, o infante D. Fernando. Frei João está a praticar um acto de veneração em relação ao Infante Santo. No seu rosto trespassam as emoções de sofrimento, de agonia e de terror de quem testemunhou as atrocidades sofridas por aquele infante. Repare-se como ambos se alheiam dos acontecimentos que se desenrolam à sua volta.

Esta disposição sugere que os Painéis foram idealizados inicialmente para serem expostos num local mais reservado e acolhedor como é o caso de uma capela real. Também os temas da pintura, marcados pela memória dos falecimentos ocorridos na família real (da rainha D. Isabel e dos infantes D. Pedro e D. Fernando) e por acontecimentos históricos marcantes, que revelam um carácter muito íntimo e sentimental, justificam a sua exposição num local de acesso restrito.

Sabe-se que D. Afonso V pagou a Nuno Gonçalves em 1470 uma importância elevada por um retábulo que este pintou para a capela do palácio real de Sintra: será que foram os Painéis? Mas paço real de Lisboa, situado na alcáçova, também dispunha de uma capela que poderia ser também um local adequado para a colocação dos Painéis…

José de Figueiredo refere que quando se analisaram os Painéis para se proceder ao seu restauro “…se encontraram grandes pingos de cera, o que é também prova de os quadros terem tido velas acesas perto.” [1] Presume-se por isso que possam ter estado num local de culto religioso, não para serem objecto de devoção mas apenas para estarem presentes quando se procedia à evocação daqueles familiares já falecidos.

Existe um traslado efectuado em 1531, a partir de um documento original do tempo de D. Afonso V, sobre as regras de precedência e de etiqueta a serem observadas na capela real de Lisboa quando o rei aí recebesse os embaixadores e príncipes estrangeiros[2]. Este documento, que é acompanhado de um desenho (fig.63), ilustra o interior desta capela e o local de assento de cada uma das entidades presentes e termina do seguinte modo fazendo referência ao desenho: “…e o assentamento do Senhor Primcipe e Iffantes, aallem do seripto em esta folha, he segundo aquy per pintura será devissado.”

Perante esta gravura pode-se avançar com a hipótese de os Painéis terem sido idealizados para serem colocados nesta capela situada no paço real de Lisboa

Possivelmente, mais tarde, quando D. Afonso V descobre a existência de mensagens escondidas que de certa forma o criticavam, ordena a retirada dos Painéis da sua vista. Esta ocorrência poderá ter acontecido e estar relacionada, eventualmente, com a transferência das funções que estavam atribuídas ao pintor João Eanes para Nuno Gonçalves em 1471.

Existirá algum documento deixado por um qualquer embaixador, que tenha sido recebido por D. Afonso V nesta capela real, que faça referência aos Painéis que possa confirmar esta nossa hipótese?
                                 
Fig.63

Vê-se que o interior da capela tinha espaço suficiente para a exposição da pintura. A sua dimensão é confirmada por uma indicação incluída num conjunto de observações, deixadas por um prelado italiano que integrava a comitiva de um cardeal enviado pelo papa Pio V, relativas a uma viagem feita a Portugal em 1571, no reinado de D. Sebastião: “Esta capella (a dos paços d’Alcaçova) é de bom tamanho. Tem um S. Miguel expulsando Lúcifer que é obra de mestre: está forrada de tapeçarias, uma das quais representa ao natural el-rei D. Manuel, rodeado do conselho dos grandes, quando resolveu mandar conquistar as Índias que hoje chamam de Portugal. É de grande preço.” [3]

Saliente-se que esta capela era dedicada a S. Miguel. O infante D. Pedro nutria especial afeição por este santo, como escreveu Rui de Pina: “Foi muito devoto do Arcanjo S. Miguel, por cuja devoção touxe por divisa as balanças; porque em sendo moço em uma doença que teve, foi de todos julgado por morto, e por um Martim Gonçalvez, capellão d'El-Rei seu padre foi assi levado ao altar da capela de S. Miguel, que está nos paços de Lisboa, a que foi devotamente encomenda-lo, d'onde milagrosamente logo retornou com vida e saude, em cuja memoria e por sua singular gratificação, com suas despesas proprias mandou fazer nos dias que viveu casas e obras muitas piedosas, assi como a egreja da cerca de Penella, e S. Miguel d'Aveiro, e o mosteiro de Santa Maria da Misericordia, que deu á ordem de S. Domingos, e a egreja de Tentugal com outras” [4].

Será que os Painéis pintados em memória do infante D. Pedro foram concebidos para serem colocados na capela real que invocava o santo que este infante tanto venerava?







[1] FIGUEIREDO, José de - Op. cit., pág. 38
[2] SERRA, José Corrêa da, - Colecção de Livros Inéditos de História Portuguesa, Tomo III (O Livro Vermelho do Senhor Rey D. Afonso V), Lisboa 1793, pág. 420-421
[3] HERCULANO, Alexandre - Opúsculos, Tomo VI, Lisboa 1884, pág. 92
[4] PINA, Rui de - Op. cit., Vol II, cap.CXXV, pág. 111