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terça-feira, 23 de setembro de 2014

7. A JÓIA E O ARCEBISPO

Quem contemple os Painéis, não pode deixar de reparar na vistosa jóia que o arcebispo ostenta ao peito (Fig.21). Aparenta ser uma peça de ouro com oito pérolas incrustadas colocadas à volta de uma esmeralda. A jovem do outro painel central tem também sobre o peito uma jóia composta por pedra preciosa e cinco pérolas.

Na pintura europeia dos séculos XV e XVI é frequente a presença de jóias com arranjos semelhantes. Normalmente a pedra fica ao centro e as pérolas orbitam à sua volta.             


                                     Fig.21                         Fig.22                          Fig.23


No famoso retábulo da Adoração do Cordeiro Místico[1] são visíveis diversas jóias deste tipo, das quais se dão os exemplos daquelas colocadas sobre o peito da Virgem da Anunciação (fig.22)[2] e na cabeça do arcanjo Gabriel (fig.23)[3].

Na pintura portuguesa encontramos também a sua presença, por exemplo, no painel da Chegada à Madre de Deus das Relíquias de Santa Auta (fig.24)[4] onde a jóia está a enfeitar o cabelo da santa, e na pintura Santa Catarina e doador (figs.25 e 26)[5] na qual se vêem quatro jóias na coroa (três com oito pérolas e a outra com dez pérolas) e mais uma no peito da santa, também com oito pérolas.

                        Fig. 24                                Fig. 25                                  Fig. 26

Na pintura medieval as pérolas simbolizavam a pureza de sentimentos e as virtudes das personagens que as usavam. As jóias que referenciámos atrás, estão colocadas precisamente sobre as imagens de anjos e santos e ilustram a pureza dos seus corações (quando colocadas no peito) e as virtudes dos seus pensamentos (quando colocadas na cabeça).
No caso concreto do arcebispo poderemos concluir, pela presença daquela coroa de pérolas, que o seu coração seria puro de sentimentos (fig.27)[6]. Qual foi o arcebispo de Lisboa, da segunda metade do séc. XV, a quem se pode atribuir este adjectivo?
Fig.27

Vejamos a relação destes prelados e o período em que exerceram os seus cargos:
D. Pedro de Noronha (1424-1452)
D. Luís Coutinho (1452-1453)
Cardeal D. Jaime de Portugal (1453-1459)
D. Afonso Nogueira (1459-1464)
Cardeal D. Jorge da Costa (1464-1500)
As breves biografias que apresentamos procuram destacar não só o carácter humano de cada um mas também os contactos que tiveram com o infante D. Pedro.

D. Pedro de Noronha[7]
Teve sempre uma atitude de declarada oposição à regência do infante D. Pedro, apoiando sempre as posições dos Braganças e da rainha viúva. As acções que desenvolveu levaram a que a população de Lisboa se revoltasse contra ele. Como consequência fugiu sucessivamente para Alhandra, Óbidos e Castela de onde só regressou passados dois anos, após autorização do regente. Apesar disto prossegue com as suas intrigas contra o infante D. Pedro, mesmo depois de este ter abandonado a governação. É de salientar a sua presença na batalha de Alfarrobeira, ao lado de D. Afonso V. Este arcebispo teve sete filhos.

D. Luís Coutinho[8]
Quando foi nomeado bispo de Viseu em 1439, em substituição do prelado anterior deposto pelo papa, teve alguma dificuldade em assumir o poder devido à oposição movida pelo regente que defendia a permanência do bispo excomungado. Em 1444 assume o bispado de Coimbra e é nesta posição que está presente em Alfarrobeira ao lado das forças do rei. Quando o infante D. Pedro cai, atingido pela seta que lhe seria fatal, D. Luís Coutinho vai ao seu encontro e consegue ainda lhe dar a absolvição, mas já não tem tempo de proceder à confissão. No rescaldo da batalha é agraciado por D. Afonso V com as quintas que tinham pertencido ao prior de Guimarães, que lutou no lado contrário, e com umas casas em Lisboa pertencentes ao Infante. Mais tarde, em 1453, e por ordem do rei, estas casas serão entregues à rainha D. Isabel. O rei concede-lhe ainda duas tenças anuais como reconhecimento dos serviços prestados.

Cardeal D. Jaime de Portugal
Filho do infante D. Pedro, acompanhou o pai na batalha de Alfarrobeira, na sequência da qual ficou preso. Após a pressão exercida pela sua tia, D. Isabel, duquesa da Borgonha, foi libertado tendo sido recolhido e protegido na corte ducal. Recebeu uma educação notável tanto na Flandres como em Roma o que lhe permitiu uma rápida ascensão na hierarquia eclesiástica (bispo aos 21 anos e cardeal aos 23 anos). O seu modo de vida, considerado exemplar, está perpetuado no tecto da capela[9], onde se encontra sepultado em túmulo monumental, através de esculturas em cerâmica que representam as quatro virtudes cardinais (justiça, fortaleza, moderação e temperança). Quando faleceu tinha apenas 26 anos.


D. Afonso Nogueira[10]
Obteve o título de doutor em leis pela universidade de Bolonha, tendo mais tarde ingressado na Congregação dos Cónegos Seculares de S. João Evangelista em Vilar de Frades. Era despegado dos bens materiais, tendo renunciado ao morgado de S. Lourenço, que lhe pertencia após a morte do irmão, a favor da sua irmã Violante Nogueira. Em 1442 o regente conseguiu junto do papa, que o Hospital/Convento de Santo Elói situado em Lisboa, fosse agregado àquela Congregação. D. Afonso Nogueira, por indicação do bispo de Viseu, assume então a direcção deste estabelecimento. Aqui praticou acções de caridade junto dos enfermos, moribundos e pobres, acudindo no alívio aos mais necessitados.
Este comportamento e atitudes foram mais tarde reconhecidos com as suas nomeações para bispo de Coimbra em 1453 e arcebispo de Lisboa em 1459. Continuou, apesar de ter assumido estas elevadas funções, a manter as mesmas posturas de humildade e de assistência junto dos mais carenciados. Eram frequentes as visitas que efectuava ao convento de Santo Elói, dada a sua proximidade com a Sé. Ali convivia com os cónegos, dormindo em camas vulgares, não permitindo em caso algum qualquer diferença relativamente à sua pessoa. Quando se aproximava a hora da sua morte “…ordenou o lugar onde queria ser enterrado, & o modo do enterro, & hua, & outra cousa, quiz que fosse, como de quem morria pobre, & alheyo de vaidade.”
Era reconhecido por ter estado próximo do infante D. Pedro porque “Foi esta eleyçaõ [para arcebispo] a tempo, em que ainda estavõ frescas as chagas dos ódios, & discórdias, dos tumultos, & excessos, que causaraõ a morte ao Infante D. Pedro, mas ainda que os emulos deste excelente Principe, se empenhavaõ quanto podiaõ, em deslusir, & inflamar as disposições do seu governo; era tal a voz que corria do Bispo D. Affonso, que nem se atreveraõ a censurar a sua primeira promoção, nem a encontrar a segunda”. [11] 
Recorde-se[12] que no final de 1439 já tinha desempenhado, na sequência do acordo estabelecido nas cortes de Lisboa, uma missão encomendada pelo Infante D. Pedro. O seu objectivo consistiu em ir junto da rainha, que se encontrava em Alenquer, para que esta desse a sua concordância as decisões tomadas em Lisboa e que permitisse a presença do jovem rei nas cortes. Estes dois factores eram necessários para validar as resoluções então aprovadas, a mais importante das quais era a atribuição da regência apenas ao infante D. Pedro. Esta missão falhou dada a relutância posta pela rainha, mas o objectivo acabou por ser atingido logo a seguir com a intervenção do Infante D. Henrique.

Cardeal D. Jorge da Costa
Era capelão no convento de Santo Elói quando (em 1445) o então reitor, o padre João Rodrigues, recebe a incumbência por parte do regente D. Pedro de educar a sua sobrinha D. Catarina, irmã de D. Afonso V. O reitor declinou esse encargo passando-o, com o acordo da regência, ao futuro arcebispo de Lisboa, que entretanto já se tinha distinguido pelas suas qualidades. Transferido para a corte rapidamente assume o papel de conselheiro e confessor de D. Afonso V. Em 1463, e por influência do rei, é nomeado bispo de Évora e no ano seguinte arcebispo de Lisboa. Acompanhou o rei nas campanhas africanas e foi enviado duas vezes a Castela na qualidade de embaixador. A sua carreira eclesiástica continuou em 1476 ao ser feito cardeal. Em 1480 estabelece-se em Roma, conseguindo atingir um papel importante dentro da Cúria onde a sua cultura e saber foram reconhecidos. Torna-se num dos mais ricos prelados da igreja. Em 1485 acumula o cargo de arcebispo de Braga. Renunciou depois aos arcebispados de Braga (1488) e de Lisboa (1500). Chegou inclusive a ser eleito papa (em 1503), no conclave que se seguiu à morte de Alexandre VI, tendo no entanto não aceitado o lugar. A nova votação colocou em seu lugar Júlio II. Morre com a idade de 102 anos e foi sepultado num sumptuoso túmulo na igreja de Santa Maria del Popolo em Roma.

Analisando as pequenas súmulas biográficas atrás apresentadas, facilmente se podem seleccionar dois arcebispos que se enquadram no perfil que estabelecemos à partida: ser conhecido pelas suas virtudes e ter estado próximo do infante D. Pedro. São eles o cardeal D. Jaime de Portugal e D. Afonso Nogueira. Mas atendendo ao facto do filho do regente ter falecido ainda jovem, não o podemos eleger para personificar a figura do arcebispo dos Painéis. Resta assim D. Afonso Nogueira que ali está representado com uma idade que rondará os 62-64 anos.



 


[1] Hubert e Jan van Eyck, 1432, Catedral Saint-Bavon, Gand, Bélgica
[2] Cortesia Closer to Van Eyck: Rediscovering the Ghent Altarpiece, http://closertovaneyck.kikirpa.be/
[3] Idem
[4] Autor desconhecido, c. 1522, Museu Nacional de Arte Antiga, Lisboa
[5] Garcia Fernandes (?), c. 1520-1530, Museu Nacional de Arte Antiga, Lisboa
[6] Cortesia Wikipedia
[7] MORENO, Humberto Baquero - Op. cit., Vol II, págs. 897-901
[8] MORENO, Humberto Baquero - Op. cit., Vol II, págs. 789-791
[9] Basílica de San Miniato al Monte, Florença
[10] SANTA MARIA, Padre Francisco de - Op. cit., pág. 639-656
[11] SANTA MARIA, Padre Francisco de - Op. cit., pág. 648-649
[12] PINA, Rui de Pina – Op. cit., Vol I, cap. XLVII, pág. 91-92