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terça-feira, 23 de setembro de 2014

8. O LIVRO E O ORADOR

O homem com ar carrancudo, vestido de escuro, que expõe e folheia um livro escrito num tipo de letra incomum, tem intrigado desde sempre os estudiosos do Painéis (fig.28)[1]. Tem sido identificado como um judeu ou como um cronista. Para a primeira proposta muito tem contribuído a estrela de seis pontas que tem no peito e a semelhança que as letras do livro têm com as hebraicas. Quanto à segunda, é salientada a parecença fisionómica existente entre esta figura e um retrato conhecido de Olivier de la Marche (fig.29), cronista ao serviço dos duques da Borgonha[2] (Filipe, o Bom e Carlos, o Temerário). O desenho subjacente revela um traço firme, admitindo-se por isso que tenha sido obtido a partir de um modelo já existente.
                                                      
                                                Fig. 28                            Fig. 29

Procuraremos neste capítulo identificar esta personagem e a razão da sua presença nos Painéis.

Para além de ser um letrado é muito provável que seja um indivíduo com formação jurídica. Para suportar esta afirmação recorremos a duas xilogravuras (figs.30 e 31), extraídas de uma obra impressa no final do século XV[3], que representam doutores em leis. O modo como expõem e folheiam os livros é em tudo idêntico ao da figura do painel da Relíquia. No entanto a cor e o tipo dos seus trajes são totalmente diferentes.

    Fig.30                                                   Fig.31


Também podemos deduzir, à primeira vista, que se trata de um monge beneditino, dada a cor escura da sua indumentária. Repare-se nas grandes semelhanças existentes com a figura de um quadro (fig.32) da segunda metade do século XV, que retrata um abade beneditino[4] da área geográfica da actual Alemanha. No entanto a cor da roupa da personagem dos Painéis é de facto verde-escuro e a do gorro é negra.
Fig.32

Acrescente-se ainda que era frequente nesta época encontrar membros do clero com formação jurídica.
A estrela vermelha tinha, antes do restauro dos Painéis concluído em 1910, dez pontas ficando depois com as seis que se vêem actualmente (fig.33)[5]. Saliente-se que as normas das Ordenações Afonsinas obrigavam a que os seguidores da religião hebraica exibissem acima do estômago um sinal de seis pernas. O formato deste sinal deveria ser mais semelhante à estrela de David (fig.34)[6] do que ao distintivo que se vê no painel. Provavelmente foi o conhecimento daquelas leis, e o pressuposto de que a personagem fosse um judeu, que levou a que o restaurador Luciano Freire reduzisse a seis o número das pontas da estrela.
            Fig.33                                 Fig.34        
               
                                             Fig.35                                   Fig.35a

Belard da Fonseca[7] refere que o investigador Garcês Teixeira observou numa radiografia (figs.35 e 35a[8]), feita pelo Museu Nacional de Arte Antiga, que a estrela era originalmente uma cruz em aspa, também conhecida por cruz de Santo André. Aquele autor, alundindo à radiografia, escreve que “esses braços em X são simétricos e bem desenhados” enquanto a estrela que se vê nos Painéis está “condenada pela assimetria.” [9]
A cruz de Santo André passou a ser, a partir do duque João Sem Medo (1411), o símbolo identificador da Borgonha e a ter uma carga política associada ao objectivo de conseguir uma autonomia total do reino da França. Aparece nas fardas militares, que são marcadas com uma cruz vermelha (figs. 37[10] e 38[11]), nas moedas (fig.39[12]) e em iluminuras. Santo André foi ainda o patrono dos exércitos do ducado e da ordem do Tosão de Ouro, instituída por Filipe o Bom em 1430. Não se tem conhecimento do uso deste símbolo em trajes civis.
                       
                                                         Fig.36                                    Fig. 37
Fig 38

A utilização deste sinal da Borgonha na figura de escuro visa precisamente identificá-lo como oriundo desse ducado. Não consideramos este facto estranho e devemos incluí-lo no conjunto de símbolos e objectos pouco usuais espalhados pelos Painéis.

Temos assim pistas que nos apontam para um homem com possível formação jurídica, talvez pertencente à ordem beneditina e oriundo da Borgonha. Este perfil enquadra-se perfeitamente no deão de Vergy, Jean Jouffroy[13] (c. 1412-1473), que esteve em Portugal nos meses de Dezembro de 1449 e Janeiro de 1450 durante o reinado de D. Afonso V.

Este indivíduo estudou direito civil e canónico nas mais prestigiadas universidades do seu tempo (Dôle, Colónia e Pavia). Depois de ter ingressado na ordem beneditina ensinou teologia e direito canónico na universidade de Pavia (1435-1438). Desempenhou diversas missões diplomáticas, em França, Itália, Portugal e Castela, ao serviço do ducado da Borgonha. A partir de 1461 exerce idênticas funções, agora ao serviço da França. Teve uma evolução eclesiástica bastante significativa: deão de Vergy (em 1449), abade de Luxeuil (1450), bispo de Arras (1453), representante papal (1459) e cardeal (1461). Assume ainda os domínios do bispado de Albi (1462) e da abadia de S. Denis (1464). A sua colecção de textos antigos e de manuscritos iluminados era das maiores do seu tempo. Bom orador, citando frequentemente nos seus discursos os autores clássicos, e arguto diplomata. Não se livrou das acusações de ser egoísta e ambicioso e que não olhava aos meios para atingir os seus fins[14].
Jean Jouffroy veio a Portugal na qualidade de embaixador do ducado da Borgonha e, em particular, ao serviço da duquesa D. Isabel, mulher de Filipe o Bom e irmã do ex-regente. Esta missão foi encomendada pela duquesa quando, na sequência da derrota na batalha de Alfarrobeira (14-5-1449), teve conhecimento do tratamento que foi dado ao corpo do seu irmão, dos aprisionamentos dos seus sobrinhos D. Jaime e D. João e ainda da retirada dos cargos e confiscação dos bens dos filhos de D. Pedro. A tarefa do deão de Vergy foi precisamente a de protestar, junto de D. Afonso V, contra estes factos.
Jean Jouffroy pronuncia, entre 6 de Dezembro de 1449 e 16 de Janeiro de 1450, quatro extensos discursos cujos conteúdos, caracterizados pela eloquência e dramatismo, pretendiam sensibilizar o rei. Estas intervenções tiveram reflexos quase imediatos com a libertação de D. Jaime e D. João que, pouco tempo depois e com a irmã Beatriz, seguiram para a Flandres onde ficaram sob a tutela da tia. Contudo os efeitos daquelas orações foram nulos no que respeitou ao tratamento dado aos restos mortais de D. Pedro.
Os ossos de D. Pedro só acabariam por ter uma sepultura digna, no mosteiro da Batalha, no final do ano de 1455.
Existe uma representação de Jean Jouffroy (fig.39)[15] num fresco na capela Sainte-Croix da catedral de Sainte-Cécile d'Albi, cidade onde era bispo. Admite-se que o retrate com cerca de 60 anos, já na fase final da sua vida. No entanto o fresco foi executado em 1510, isto é, 37 anos após a sua morte, baseado certamente num retrato anterior.

    
                                                   Fig.39                                      Fig.40

Constata-se que era encorpado, tal como a figura do painel da Relíquia. Observando com atenção o detalhe da cabeça do prelado, nota-se um pequeno sinal no lado direito do queixo e consegue-se ainda vislumbrar uma orelha de dimensões apreciáveis. Quanto ao rosto da personagem dos Painéis (fig.40)[16] vê-se também um sinal no lado direito do queixo, que ainda está pequeno mas que deve ter crescido com a idade, e uma orelha igualmente grande. Ambos têm uma papada saliente.

A coincidência destes sinais contribui também, embora não definitivamente, para a identificação que propomos para esta figura. Saliente-se, no entanto, que Jean Jouffroy teria 37 anos quando passou por Portugal e que a personagem dos Painéis, devido ao seu ar pesado e sisudo, nos parece ser um pouco mais velha. Talvez se tenha recorrido a um retrato posterior.

Finalmente, e com vista a darmos a pista que consideramos decisiva para a sua identificação, debrucemos sobre o livro que tem na mão.
Em primeiro lugar chama-se a atenção para o facto de que o pintor poderia facilmente recorrer à significativa comunidade judaica existente em Lisboa (alguns colocados em lugares importantes do reino), se a sua intenção fosse que o texto do livro mostrasse os caracteres hebraicos e não uma simulação dos mesmos. Não fará assim muito sentido afirmar que o pintor procurou imitar os caracteres hebraicos porque não sabia como escrevê-los correctamente.
Belard da Fonseca foi o único investigador que avançou com uma proposta de leitura para este livro misterioso. Considerou que o texto está escrito em latim e que o tipo de letra utilizado se aproxima do que era utilizado nos textos alemães do século XV. Como seria de esperar a sua proposta de leitura levantou muita polémica e não foi, e continua a não ser, aceite pela grande maioria dos estudiosos dos Painéis.
Abrimos aqui um pequeno parêntesis para referir, ainda antes de termos tido conhecimento da obra deste estudioso, que nos parecia que a 7ª palavra da 2ª coluna na 2ª página (fig.41)[17] teria algo a ver com Portugal. Curiosamente Belard da Fonseca interpretou esta palavra como PORTUGALENSI.
                                        
Fig. 41

A decifração da página direita do livro, que foi publicada no primeiro volume da sua obra, é a seguinte após a tradução do latim: 1ª coluna “O Cardeal Jaime, filho do Infante D. Pedro de Portugal, rogou a Santo António que ao corpo de seu pai fosse feita sepultura na Igreja de Santa Maria” e na 2ª coluna “Santo António fez virtuosa e piíssima a sua santa vida, para que os sagrados ossos do Infante D. Pedro de Portugal fossem sepultados na Igreja de Santa Maria, no mês de Julho de 1455” [18].

No quarto volume[19] Belard da Fonseca consegue apenas, e não na totalidade, interpretar a coluna da direita da folha dobrada. Aqui o autor lê (fig.42)[20] na 4ª linha o nome latino de Jean Jouffroy sob a forma de J. YOFRIDI e, no início da 5ª linha, CANI, ou seja a parte final da palavra latina DECANI, isto é deão.
Fig.42

O autor recorda que era assim, Ioannis Ioffridi, decani de Vergeio, que aquele orador se referia a si próprio como, consta nos discursos em latim que fez perante D. Afonso V[21]. Se analisarmos mais detalhadamente a sua proposta de leitura para J. YOFRIDI, verificaremos (fig.43)[22] uma total coincidência e semelhança entre as letras do alfabeto do livro e as do alfabeto latino:





 Fig.43
A forma latina do nome é confirmada pela inscrição existente nas armas pessoais (fig.44)[23] que o deão de Vergy usava por volta de 1450.
                                       
Fig.44
Registamos ainda o curioso pormenor de o dedo indicador da sua mão direita estar precisamente entre aquelas duas linhas (4ª e 5ª) como que a nos sinalizar o local onde se encontra o seu nome (fig.45)[24].

Fig.45

Pensamos que a concordância de todos os factos atrás expostos na pessoa desta figura é muita coincidência o que nos leva a deduzir que esta personagem só pode ser Jean Juffroy.

Finalmente conclui-se que um dos patrocinadores da obra só pode ter sido alguém que sempre lutou para que as ossadas de D. Pedro descansassem num local honrado. Esse doador foi a duquesa D. Isabel, como já referimos. E para que aquele acontecimento não ficasse esquecido dá instruções ao pintor para incluir, na pessoa do deão de Vergy, uma mensagem subtil de protesto contra aquele acontecimento.

O artista mostra-nos a reacção de Jean Juffroy retratando-o com um semblante pesado e ar grave. Esta atitude é ainda reforçada quando o põe a virar, em sentido contrário, as folhas do livro que conteriam simbolicamente os seus quatro discursos. Para além disso ilustra as páginas com um texto de difícil compreensão, tal como deve ter sido o entendimento que D. Afonso V mostrou perante os discursos do deão de Vergy.

A presença desta figura nos Painéis só se justifica se o tema principal da pintura se relacionar com o infante D. Pedro. Não encontramos outra explicação para esta figuração.








[1] Cortesia Wikipedia
[2] FONSECA, António Belard da. O Mistério dos Painéis – O “Judeu”, o seu livro e a crítica, Lisboa, 1958, pág. 4-8
[3] SCHEDEL, Hartmann, Liber Chronicarum, 1493, Fig.13: Baldus iuris doctor (fólio 236v);  Fig.14: Antonius de butrio iur doctor (fólio 242r)
[4] POLACK, Jan. Retrato de um Abade Beneditino, 1484, Museu Thyssen-Bornemisza, Madrid. Cortesia Wikimedia Commons.
[5] Cortesia António Salvador Marques em http://paineis.org
[6] Datada do séc. XV e oriunda de Torres Vedras
[7] FONSECA, António Belard da. O Mistério dos Painéis - O Cardeal D. Jaime de Portugal, Lisboa, 1963 (2ªed.), pág.161-163 e fig.80
[8] Realçámos os traços da estrela visívéis na radiografia
[9] FONSECA, António Belard da. O Mistério dos Painéis – O “Judeu”, o seu livro e a crítica, Lisboa, 1958, pág.14-18
[10] Pormenor de uma iluminura, de 1480-84, existente na Burgerbibliothek, Berna, Suiça. Representa a batalha de Morat travada em 1476 entre as tropas suíças e borgonhesas. Repare-se nos X existentes nos corpos dos soldados, nos estandartes e nos escudos caídos no campo da batalha.
[11] Pormenor de uma iluminura “Os borgonheses entram em Paris” incluída na obra Vigiles de Charles VII, séc. XV, Bibliothèque Nationale de France, Paris
[12] Moeda em prata de Carlos o Temerário, onde se vêem três cruzes de Santo André (duas no anverso e uma no reverso)
[13] Segundo Belard da Fonseca, (Op. cit, O Cardeal D. Jaime de Portugal págs. 160-161) Garcez Teixeira avançou com esta hipótese de identificação, em artigo do Diário de Notícias de 1945 (desconhece-se o dia). Henrique Loureiro (O Políptico do Convento de Santo Elói, Lisboa, 1927, pág. 100) já tinha referenciado o deão de Vergy, mas na personagem de joelhos que expõe a relíquia.
[14] The Catholic Encyclopedia. Vol. 8. New York, 1910
[15] Cortesia Wikipedia
[16] Cortesia Wikipedia
[17] Cortesia António Salvador Marques em http://paineis.org
[18] FONSECA, António Belard da - Op. cit., O Cardeal D. Jaime de Portugal, págs. 175-176.
[19] FONSECA, António Belard da - O Mistério dos Painéis – Os Pintores, Lisboa, 1963, págs. 150-153
[20] Cortesia António Salvador Marques em http://paineis.org
[21] FONSECA, António Belard da - Op. Cit., Os Pintores, pág. 152
[22] FONSECA, António Belard da - Op. Cit., Os Pintores, pág. 152
[23] Pormenor de iluminura, Biblioteca Apostólica do Vaticano, Lat. 409
[24] Cortesia António Salvador Marques em http://paineis.org