A maioria dos estudiosos
e investigadores que se têm debruçado sobre a senhora de idade retratada no
Painéis (fig.1)[1], que à
primeira vista se parece com uma religiosa com uma idade perto dos 70 anos,
identifica-a como D. Isabel, duquesa da Borgonha e mulher de Filipe o Bom.
Esses autores baseiam-se principalmente nas semelhanças existentes com outros retratos
conhecidos da duquesa.
Fig.1 Fig.2 Fig.3
Concordamos igualmente
que se trata da filha de D. João I. Repare-se nas grandes parecenças existentes
com um desses retratos (fig.3)[2]
atribuído a Rogier van der Weyden: os vincos das pálpebras dos olhos, a posição
inclinada do pescoço para a frente, o formato do nariz, os vincos das maças do
rosto a caírem sobre a boca.
Se substituirmos o rosto
de D. Isabel do retrato dos Painéis por este existente no museu de Malibu, na
sua posição invertida (fig.2), reforçamos ainda mais estas semelhanças e
concluímos que as duas damas são uma só e única pessoa, embora uma mais jovem
do que a outra.
A análise iconográfica
que aqui estabelecemos é reforçada, como vimos no capítulo anterior, com a comparação
dos pormenores fisionómicos da duquesa com os do seu irmão.
Um detalhe da descrição
feita pelo cronista borgonhês D’Escouchy[3],
do faustoso Banquete do Faisão
oferecido pelo duque Filipe o Bom no dia 17 de Fevereiro 1454 na cidade de
Lille, diz-nos como é que as damas da alta nobreza se vestiam de luto na corte
da Borgonha: “Celle dame estoit vestue
d’une robe de satin blanc moult simplement faicte, pour monstrer la hautesse de
sa naissance et le noble lieu dont elle estoit venue; et par dessus icelle robe
avoit ung manteau de drap noir, dont elle estoit simplement affulée, en
seigniffiant son doeul et son adversité; et estoit sa teste affulée et atournée
moult douchement d’un blanc coevre chief, à la guise de Bourgoingne, ou
de recluse”. Este extracto confirma que as nobres usavam uma túnica de
veludo branco, sobre a qual assentava um manto negro a sinalizar o seu luto. A
sua face estava envolta por uma coifa branca, à moda da Borgonha ou como se
fosse uma religiosa.
Este relato descreve na
íntegra a indumentária que D. Isabel enverga onde se apresentará de luto pela
morte do seu marido ocorrida em 1467. Neste caso estaremos no limite do período
em que situamos a execução da pntura (1464-1467 – ver capítulo 14). Pode-se
igualmente admitir que se fez retratar neste estado, em memória do seu irmão,
numa obra que o evoca. Finalmente põe-se a hipótese de que esteja a usar a
roupa que vestia no seu castelo de La Motte-au-Bois, após se ter retirado
praticamente da vida palaciana em 1460, onde instituiu uma espécie de asilo que
dava ajuda aos pobres e doentes.
A duquesa da Borgonha
manteve sempre um contacto muito estreito com a sua família portuguesa.
Na sequência da morte do
seu irmão, o infante D. Pedro, na batalha de Alfarrobeira, envia a Portugal o
embaixador Jean Juffroy com a incumbência de protestar, junto de D. Afonso V,
contra o tratamento que foi dado aos restos mortais deste infante e contra a
perda de bens e direitos dos filhos do ex-regente e, em particular, contra a
situação de prisioneiro em que se encontrava um deles, D. Jaime, então com 15
anos.
No seguimento destas
diligências D. Isabel acolhe (1450) na sua corte os seus sobrinhos Jaime, João
e Beatriz, todos filhos de D. Pedro. A protecção e apoio que lhes vai prestar
permitirão que atinjam lugares de muito destaque. Assim Beatriz casa (1453) com
Adolphe de Cléves, senhor de Ravenstein e sobrinho de Filipe o Bom. João é
armado cavaleiro da ordem do Tosão de Ouro e, através das negociações em que
intervieram os duques, casa com Charlotte de Lusignan, filha herdeira do rei de
Chipre. É-lhe dado o título de príncipe de Antioquia, vindo a falecer
envenenado passados dois anos (1457). Finalmente o sobrinho Jaime recebe uma
esmerada educação tendo sido enviado para Itália para seguir a carreira eclesiástica
onde é promovido a cardeal com apenas 23 anos. Foi ainda arcebispo de Lisboa e
bispo de Arras tendo falecido (1459) ainda jovem aos 26 anos.
É conhecido o papel de
mecenas que os duques de Borgonha desenvolveram no campo artístico, apoiando
pintores como Jan van Eyck e Rogier Van der Weyden, protegendo escritores e
encomendando livros, muitos dos quais traduções de clássicos da antiguidade. D.
Isabel estendeu estas acções também a Portugal com a oferta de uma pintura[4],
atribuída a Van der Weyden, que seria colocada junto aos restos mortais dos
seus pais na capela do Fundador no Mosteiro da Batalha. Também terá oferecido
ao seu irmão, o rei D. Duarte, um magnífico Livro
de Horas actualmente guardado na Torre do Tombo em Lisboa. De assinalar
ainda a participação no financiamento das obras monumentais da capela e do
túmulo, situadas em Florença, onde foi sepultado o seu sobrinho, o cardeal D.
Jaime
D. Isabel foi a
patrocinadora, se não a única pelo menos a mais importante, da execução dos
Painéis. Cremos mesmo que terá contribuído decisivamente para a concepção do
tema principal dos Painéis.
[1] Cortesia Wikipedia
[2] Pormenor. J. Paul Getty Museum, Malibu, Califórnia, E.U.A. Cortesia
Wikipedia[4] Sabe-se da existência desta pintura através de um desenho feito por Domingos Sequeira no início do século XIX. Este quadro terá desaparecido na sequência das invasões francesas.