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terça-feira, 23 de setembro de 2014

3. A DUQUESA


A maioria dos estudiosos e investigadores que se têm debruçado sobre a senhora de idade retratada no Painéis (fig.1)[1], que à primeira vista se parece com uma religiosa com uma idade perto dos 70 anos, identifica-a como D. Isabel, duquesa da Borgonha e mulher de Filipe o Bom. Esses autores baseiam-se principalmente nas semelhanças existentes com outros retratos conhecidos da duquesa.   



                Fig.1                                      Fig.2                                      Fig.3

Concordamos igualmente que se trata da filha de D. João I. Repare-se nas grandes parecenças existentes com um desses retratos (fig.3)[2] atribuído a Rogier van der Weyden: os vincos das pálpebras dos olhos, a posição inclinada do pescoço para a frente, o formato do nariz, os vincos das maças do rosto a caírem sobre a boca.

Se substituirmos o rosto de D. Isabel do retrato dos Painéis por este existente no museu de Malibu, na sua posição invertida (fig.2), reforçamos ainda mais estas semelhanças e concluímos que as duas damas são uma só e única pessoa, embora uma mais jovem do que a outra.

A análise iconográfica que aqui estabelecemos é reforçada, como vimos no capítulo anterior, com a comparação dos pormenores fisionómicos da duquesa com os do seu irmão.

Um detalhe da descrição feita pelo cronista borgonhês D’Escouchy[3], do faustoso Banquete do Faisão oferecido pelo duque Filipe o Bom no dia 17 de Fevereiro 1454 na cidade de Lille, diz-nos como é que as damas da alta nobreza se vestiam de luto na corte da Borgonha: “Celle dame estoit vestue d’une robe de satin blanc moult simplement faicte, pour monstrer la hautesse de sa naissance et le noble lieu dont elle estoit venue; et par dessus icelle robe avoit ung manteau de drap noir, dont elle estoit simplement affulée, en seigniffiant son doeul et son adversité; et estoit sa teste affulée et atournée moult douchement d’un blanc coevre chief, à la guise de Bourgoingne, ou de recluse”. Este extracto confirma que as nobres usavam uma túnica de veludo branco, sobre a qual assentava um manto negro a sinalizar o seu luto. A sua face estava envolta por uma coifa branca, à moda da Borgonha ou como se fosse uma religiosa.

Este relato descreve na íntegra a indumentária que D. Isabel enverga onde se apresentará de luto pela morte do seu marido ocorrida em 1467. Neste caso estaremos no limite do período em que situamos a execução da pntura (1464-1467 – ver capítulo 14). Pode-se igualmente admitir que se fez retratar neste estado, em memória do seu irmão, numa obra que o evoca. Finalmente põe-se a hipótese de que esteja a usar a roupa que vestia no seu castelo de La Motte-au-Bois, após se ter retirado praticamente da vida palaciana em 1460, onde instituiu uma espécie de asilo que dava ajuda aos pobres e doentes.

A duquesa da Borgonha manteve sempre um contacto muito estreito com a sua família portuguesa.

Na sequência da morte do seu irmão, o infante D. Pedro, na batalha de Alfarrobeira, envia a Portugal o embaixador Jean Juffroy com a incumbência de protestar, junto de D. Afonso V, contra o tratamento que foi dado aos restos mortais deste infante e contra a perda de bens e direitos dos filhos do ex-regente e, em particular, contra a situação de prisioneiro em que se encontrava um deles, D. Jaime, então com 15 anos.

No seguimento destas diligências D. Isabel acolhe (1450) na sua corte os seus sobrinhos Jaime, João e Beatriz, todos filhos de D. Pedro. A protecção e apoio que lhes vai prestar permitirão que atinjam lugares de muito destaque. Assim Beatriz casa (1453) com Adolphe de Cléves, senhor de Ravenstein e sobrinho de Filipe o Bom. João é armado cavaleiro da ordem do Tosão de Ouro e, através das negociações em que intervieram os duques, casa com Charlotte de Lusignan, filha herdeira do rei de Chipre. É-lhe dado o título de príncipe de Antioquia, vindo a falecer envenenado passados dois anos (1457). Finalmente o sobrinho Jaime recebe uma esmerada educação tendo sido enviado para Itália para seguir a carreira eclesiástica onde é promovido a cardeal com apenas 23 anos. Foi ainda arcebispo de Lisboa e bispo de Arras tendo falecido (1459) ainda jovem aos 26 anos.

É conhecido o papel de mecenas que os duques de Borgonha desenvolveram no campo artístico, apoiando pintores como Jan van Eyck e Rogier Van der Weyden, protegendo escritores e encomendando livros, muitos dos quais traduções de clássicos da antiguidade. D. Isabel estendeu estas acções também a Portugal com a oferta de uma pintura[4], atribuída a Van der Weyden, que seria colocada junto aos restos mortais dos seus pais na capela do Fundador no Mosteiro da Batalha. Também terá oferecido ao seu irmão, o rei D. Duarte, um magnífico Livro de Horas actualmente guardado na Torre do Tombo em Lisboa. De assinalar ainda a participação no financiamento das obras monumentais da capela e do túmulo, situadas em Florença, onde foi sepultado o seu sobrinho, o cardeal D. Jaime

D. Isabel foi a patrocinadora, se não a única pelo menos a mais importante, da execução dos Painéis. Cremos mesmo que terá contribuído decisivamente para a concepção do tema principal dos Painéis.






[1] Cortesia Wikipedia
[2] Pormenor. J. Paul Getty Museum, Malibu, Califórnia, E.U.A. Cortesia Wikipedia
[3] D’ESCOUCHY, Mathieu. Chronique, Tome II, Paris, 1863,  pág.153.
[4] Sabe-se da existência desta pintura através de um desenho feito por Domingos Sequeira no início do século XIX. Este quadro terá desaparecido na sequência das invasões francesas.