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terça-feira, 23 de setembro de 2014

13. A FIGURA SANTIFICADA


O santo representado nos painéis de maiores dimensões é, para os defensores da principal tese, S. Vicente padroeiro de Lisboa. Uma outra teoria, também com alguns apoiantes, vê nessa figura o Infante Santo. Há ainda quem tenha proposto soluções de compromisso, isto é, numa figura estaria representado S. Vicente e na outra o infante D. Fernando. Para além destas muitas outras hipóteses foram avançadas, como por exemplo o cardeal D. Jaime, S. Crispim e S. Crispiniano, S. Catarina, etc.

Na nossa perspectiva existem indícios de que a figura santificada possa representar S. João Evangelista. Esta proposta já tinha sido aflorada por Conceição Silva[1] sem no entanto avançar com uma justificação plausível para essa ideia. A iconografia do século XV relativa a este apóstolo inclui habitualmente imagens de um jovem imberbe cujos atributos podiam ser uma águia, uma taça ou um livro.

Verifica-se que o santo é de facto jovem e que segura um livro. Este livro encontra-se fechado no painel do Arcebispo (fig.64)[2] e aberto no do Infante (fig.65)[3]. Existe assim uma intenção de mostrar uma revelação (no livro aberto) de algo que estava oculto (no livro fechado). Esta simbologia remete-nos para S. João Evangelista, autor do Apocalipse[4], o último dos livros da Bíblia. Isto é, o autor do livro da Revelação está presente nos Painéis também para revelar o tema principal da pintura (ver o capítulo A rainha e o livro).
    
                                                  Fig. 64                            Fig.65

Vejamos outros argumentos que procuram fundamentar a nossa hipótese.

Sabemos que a rainha D. Isabel, colocada à direita do santo no painel do Infante, era muito devota de S. João Evangelista. Este facto foi confirmado ao longo da sua curta vida. D. Isabel marcou as cerimónias do seu casamento ”… a seis de Mayo, dia que a Rainha escolheu por amor do seu Evangelista, anno de 1448.” [5], dia este em que a Igreja celebra o martírio deste apóstolo. Os nomes escolhidos para os seus filhos mostram essa mesma afeição. “Teve dous filhos, & huã filha: o primeiro D. João, que morreo menino, o segundo também D. João, que ao depoes foi Rey, a filha D. Joanna, chamada a Princesa Santa; & costumava dizer: Que se vinte filhos tivera, a todos havia de por o nome de João, em obsequio de S. João Evangelista.” [6] Por fim é de referir que D. Isabel deixou dois testamentos muito semelhantes entre si: o primeiro datado uns dias antes do nascimento de D. Joana e o segundo, presume-se, celebrado antes da vinda ao mundo do futuro D. João II. Em ambos dirige-se ao seu marido nos seguintes termos “…o que ficar destes vinte e oito mil escudos, pagadas as dividas, se ElRey meu Senhor no quizer pagar, eu lhe pesto de mercê que lhe praza, de se fazer hum Moesteiro aa honra de S. João Euangelista da Ordem de Santo Eloy e esto se faça em Santo Eloy, ou em S. Bento Dexobregas onde parecer milhor a ElRey meu Senhor…” [7] Este pedido é confirmado por D. Afonso V que se expressa, em carta datada de 21 de Maio de 1456, do seguinte modo: “As dividas da dita rainha que Deos aja, seraõ pagas e seus criados seraõ satisfeitos, o Moesteiro de S. João será edificado…” [8] Este mosteiro foi erigido no local onde se encontra actualmente o Convento do Beato em Lisboa.

Acrescente-se ainda, para melhor alicerçar esta hipótese, o hábito de os doadores se fazerem representar, na pintura do século XV, junto dos santos da sua devoção. Como já referimos em capítulo anterior os patrocinadores, D. Isabel de Borgonha e D. Afonso V, cederam o seu lugar respectivamente à sobrinha e esposa, e devem ter dado indicações para que o santo colocado ao lado da rainha representasse S. João Evangelista. Finalmente, e também como já aludimos atrás, os textos da 1ª e 3ª página do livro que o santo exibe são precisamente extractos do Evangelho Segundo S. João.

Quanto ao painel do Arcebispo, já vimos que a figura santificada está a empossar simbolicamente o infante D. Pedro na regência do reino, facto que ocorreu durante as cortes de Lisboa de 1439.

Os trabalhos das cortes tiveram, segundo Rui de Pina, início a 10 de Dezembro[9]. No decorrer dos trabalhos a proposta da atribuição da regência única ao duque de Coimbra foi exposta e defendida pelo doutor Diogo Afonso Mangancha em nome do Infante D. João. Os procuradores dos concelhos, que se apresentaram nas cortes com um acordo previamente concertado entre eles, também de apoio à regência do infante D. Pedro, votaram esta posição que saiu vencedora.

No entanto, para que estas decisões fossem válidas, era necessária a sua aprovação por parte da rainha viúva D. Leonor e a presença do jovem rei nas cortes. Como estes se encontravam em Alenquer, o infante D. Pedro envia o governador da sua casa, Álvaro Gonçalves de Ataíde, com uma mensagem comunicar a decisão das cortes e a solicitar a presença de ambos. O resultado desta embaixada foi nulo. É constituída uma nova missão formada por Afonso Nogueira, futuro arcebispo de Lisboa, e o ministro de S. Francisco, confessor do rei, que também não obtém qualquer efeito junto da rainha que se mostrou intransigente em ceder o poder ou a autorizar a presença do rei em Lisboa[10].

Finalmente recorreu-se ao infante D. Henrique que, com a sua argúcia diplomática, consegui demover a rainha das posições que tinha assumido. No dia seguinte uma comitiva, que incluía este infante, D. Leonor e os seus dois filhos (o jovem rei e o irmão D. Fernando) parte de Alenquer rumo a Lisboa, enquanto o infante D. Pedro sai da capital ao seu encontro. Este dá-se em Santo António, na “…bespora de Natal, onde foi acordado que El-Rei e a Rainha tivessem a festa.” [11]

A comitiva passou assim o dia de Natal nesta localidade, tendo seguido no dia seguinte em direcção a Lisboa, via rio Tejo. Neste dia, 26 de Dezembro, chega à capital, local onde o jovem rei é recebido com muitas cerimónias, tendo sido depois levado à Sé e aos Paços da Alcáçova. O rei deve ter descansado no resto do dia, mas “Mandou logo o Infante D. Pedro a Ruy Gonçalves de Castel-Branco, védor que fôra d'El-Rei D. Duarte, que fizesse nos paços correger em grande perfeição a salla em que El-Rei havia d'estar nas côrtes. E concordado o dia, que foi aos dez dias de Dezembro de quatro centos e XXXIX” [12]. Na indicação desta data existe um erro, de Rui de Pina ou do copista do original[13], porque não é compatível com as datas e acontecimentos anteriormente relatados: repare-se que é a mesma que o cronista indica para o início das cortes.

Assim é possível que o recomeço dos trabalhos das cortes possa ter acontecido no dia 27 de Dezembro, onde “…assentado El-Rei em sua cadeira, e acompanhado de senhores e officiaes, como para auto tão real convinha e se acostumava, o doutor Diogo Affonso Mangancha propoz a arenga em nome d'El-Rei ao povo, cuja principal sustancia foi: «aprovar e confirmar a enleição por elles feita de o Infante D. Pedro para por elle reger, e agardecer-lhes e prometer-lhes mercês, honras e liberdades pela assi fazerem, e assi encommendar ao Infante que o fizesse assi bem e direitamente, como d'elle confiava, e mandar a todos que lh'obedecessem, como á sua propria pessoa». E em acabando o doutor, o Infante D. Pedro com os giolhos em terra beijou a mão a El-Rei, e sua Senhoria lhe entregou logo um páo em que estava atado o sello secreto, em signal e nome de poderio.” [14]

O dia 27 de Dezembro corresponde à data do ano escolhido pela Igreja para celebrar S. João Evangelista.

Existem outros documentos que permitem enquadrar esta data. Assim em carta datada de 30 de Dezembro de 1439 o regente já se assume como “…ssenhor jfante dom Pedro, tetor e curador do dito ssenhor rrej, [governador] por ell de seus rregnos e senhorio.” [15]. Por contrapartida, uma carta da regência datada de 10 de Dezembro, terminava com o seguinte texto: “Elrrej com autoridade da rraynha ssenhora sua madre, como sua tetor e curador que he, e per o jfante dom Pedro.” [16]. Um documento emitido em nome do regente a 4 de Janeiro de 1440 esclarece que as cortes decorreram no mês de Dezembro: “Sabede que, nas cortes que, per graça de Deus, fizemos em esta muy nobre, leal cidade de Lisboa, no mês de Dezembro do [anno do] Senhor de mil quatrocentos e trinta e nouve anos…” [17].

Apontamos deste modo para a forte possibilidade de a figura santificada dos Painéis ser S. João Evangelista atendendo por um lado, no painel do Infante, à grande devoção que a rainha D. Isabel nutria por este apóstolo, e por outro, no painel do Arcebispo, ao acontecimento que aí vislumbramos, que é a tomada de posse do infante D. Pedro, ter ocorrido no dia que a Igreja instituiu para a celebração deste santo. Ligado a estes factos entrevê-se ainda o da revelação do tema da pintura, associado à simbologia do livro fechado/livro aberto que é efectuado precisamente pelo autor do livro da Revelação incluído na Bíblia: S. João Evangelista.






[1] SILVA, José Luís Conceição - Os Painéis do Museu das Janelas Verdes, Lisboa, Guimarães Editores, 1981, págs. 176-177
[2] Cortesia Wikipedia
[3] Cortesia Wikipedia
[4] Actualmente há quem ponha em causa esta autoria, ao contrário do que acontecia no século XV. A palavra apocalipse, cujo étimo é grego (apokálypsis), significa revelação.
[5] SANTA MARIA, Padre Francisco de - Op. cit., pág. 476
[6] SANTA MARIA, Padre Francisco de - Op. cit., pág. 477
[7] SOUSA, António Caetano de - Op. cit., pág. 54
[8] SOUSA, António Caetano de - Op. cit.,, pág. 58
[9] PINA, Rui de - Op. cit., Vol I, cap.XLVI, pág. 89
[10] PINA, Rui de - Op. cit., Vol I, cap.XLVII, pág. 91-92
[11] PINA, Rui de - Op. cit., Vol I, cap.XLVIII, pág. 92-93
[12] PINA, Rui de - Op. cit., Vol I, cap.XLIX, pág. 93-94
[13] Também não há erro tipográfico porque é assim que está escrito no códice depositado na Torre do Tombo com a referência PT/TT/CRN/17
[14] PINA, Rui de - Op. cit., Vol I, cap.XLIX, pág. 94
[15] DINIS, António Joaquim Dias - Op. cit., pág.18
[16] DINIS, António Joaquim Dias - Op. cit., pág.14
[17] DINIS, António Joaquim Dias - Op. cit., pág.36