A corda colocada aos pés
da figura central do painel do Arcebispo (fig.6)[1]
terá tido um significado que seria perfeitamente transparente no século XV mas
que não o é actualmente. A sua dimensão e o espaço que ocupa entre as três figuras
principais obriga, a quem contemple os Painéis, a lhe dirigir o seu olhar e
questionar a sua presença.
Fig.6
Ao longo do século XX,
esta corda foi objecto de diferentes interpretações segundo a abordagem geral
seguida por cada um dos autores. Estes podem ser agrupados em dois grandes
grupos. Por um lado, os que viram na corda um elemento associado à vida,
martírios ou milagres do santo que identificaram na figura central e, por
outro, aqueles que reconheceram nela apenas um objecto simbólico ou a transmissão
de uma mensagem.
Aceitamos que a corda
represente um rebos[2], tal
como foi proposto por Theresa Schedel de Castello Branco[3].
Nesta linha de pensamento propomos três hipóteses de leitura que têm em comum
uma vontade de aproximar e de unir pessoas.
O restauro dos Painéis,
realizado por Luciano Freire, eliminou uma mancha rectangular, situada sobre a
corda onde possivelmente poderia estar “uma
cartela, ou uma palavra complementar à figura, ou o nome do santo” [4],
ou uma data, acrescentamos nós. Essa parte do painel do Arcebispo com uma corda enrolada com uma data inscrita,
podia ser lida como concordata. Será
que o motivo principal deste painel é a celebração de um acordo?
No convento do Varatojo,
situado junto a Torres Novas, mandado construir por D. Afonso V como
cumprimento de uma promessa feita a Santo António se este o protegesse nas
campanhas africanas, pode-se ver a associação da imagem da sua empresa (o
rodízio) com o cordão franciscano. Este motivo é visível não só num embutido de
uma parede (fig.8), mas também na abóbada do templo onde está repetidamente
pintado (fig.7). Será que a corda aos pés do santo representa o cordão
franciscano? Não o cremos, dado o seu comprimento e por ter mais do que os três
nós usados pelos frades franciscanos. Mas se o fosse, teríamos então um painel com cordão com nós, ou seja, concordam com nós. Esta proposta de leitura está de facto mais condizente com
os motivos existentes neste convento: o cordão e o ”nós”, este no duplo
significado, os nós (do cordão) e o nós (o próprio D. Afonso V representado
pela sua divisa).
Fig.7 Fig. 8
A nossa última proposta
de leitura permite-nos uma interpretação geral do painel do santo com corda com nós aos seus pés e que nos
parece ser a mais simples e imediata: concorda
com nós.
No painel do Arcebispo
está reunida uma assembleia cujo motivo deve ser importante, pelas presenças do
infante D. Pedro, que assume uma postura régia (tem apenas um joelho no chão),
do arcebispo e outros clérigos, de dois grupos de militares e ainda, no canto
superior direito, duas figuras uma das quais é um letrado (tem um livro debaixo
do braço). Não se vislumbra qualquer veneração ou adoração ao santo ou
agradecimento de uma graça por ele concedida. Existem apenas duas figuras que
têm as mãos postas e nenhuma delas tem o olhar focado na figura santificada.
Trata-se de um acontecimento solene com carácter profano.
Nesta cena os três
elementos do primeiro plano são os actores principais, enquanto os restantes desempenham
apenas o papel de figurantes ou testemunhas. Aqueles actores estão ligeiramente
adiantados e a corda, colocada no meio delas, reforça esse isolamento.
Verifica-se, por parte das restantes personagens, um certo alheamento
relativamente ao que se passa na boca de cena.
Percebe-se que a cena
tem movimento e que as personagens estão a dialogar. O santo acabou de falar
com a figura à sua esquerda, o infante D. João[5],
e vira-se para o regente. Este movimento é visível através do deslocamento para
a esquerda da túnica junto ao chão. Esta cairia na vertical se o santo
estivesse parado, tal como se vê no painel do Infante. O infante D. João
aguarda que o seu irmão aceite a regência dando o seu acordo ao decidido nas
cortes de Lisboa de 1439.
No painel do Infante foi
revelado, no local onde se encontra D. Afonso V, um desenho preparatório
subjacente (fig.9)[6] no qual
é visível uma figura com os dois joelhos no chão segurando um documento.
Conclui-se, perante a versão final, que houve uma alteração da ideia inicial
ligada a este desenho. No seu lugar vê-se actualmente uma personagem que foi
promovida no seu estatuto (passa a ter apenas um joelho no chão) e que não tem
qualquer manuscrito na mão. Pensamos que a figura inicialmente associada àquele
desenho foi transferida para o painel do Arcebispo onde assumiu a personagem do
infante D. João. Note-se como ambas têm os joelhos no chão. O documento que se
vê na mão, onde se vislumbra um esboço de escrita (fig.10), simboliza o acordo
aprovado nas cortes de Lisboa de 1439 cuja redacção teve a participação muito
especial do infante D. João. Na versão final da pintura constata-se que a
figuração deste acordo, que era demasiado evidente, foi substituído pela imagem
mais subtil da corda com nós, como vimos atrás.
Retomando a leitura do
painel vê-se que o santo continua no seu papel de mediador. Coloca a mão
direita junto ao coração do duque de Coimbra e, pelo poder que lhe é dado pela
vara de comando[7], pergunta-lhe:
concorda com nós? O duque olha para o
santo (é o único que tem o direito de o fazer), coloca a mão direita no centro
do peito e responde-lhe: sim. O santo
reage à resposta com um sorriso nos lábios. Saliente-se que antes do restauro
os lábios do infante D. Pedro estavam ligeiramente separados, dando a impressão
de que estava a falar, e que tanto o olhar como o sorriso do santo eram mais
expressivos.
Defendemos assim que o painel do Arcebispo represente, principalmente e simbolicamente, a investidura do infante D. Pedro no cargo de regente.
Vejamos uma pequena síntese dos acontecimentos que estiveram por detrás dos dois acordos que originaram esta tomada de posse.
D. Duarte falece no mês de Setembro de 1438 mas o filho, o futuro D. Afonso V, ainda não tem idade para exercer o poder. O rei deixa um testamento onde exprime a vontade de que a sua mulher, D. Leonor, assuma sozinha a regência do Reino durante a menoridade do novo soberano. O teor do testamento deu origem a uma série de reacções tendo sido acordada, entre a rainha e os seus cunhados, a convocação das cortes para deliberar sobre o assunto. Estas reúnem-se em Torres Novas cujos trabalhos se desenvolvem durante o mês de Novembro daquele ano. Chega-se a um acordo de regimento que estabelece a divisão de poder entre D. Leonor e o infante D. Pedro e o modo como o mesmo será exercido. O documento é assinado por ambos, com algumas reservas: a rainha queria o total da governação e o infante considerava que os poderes que lhe foram atribuídos eram reduzidos. Estas reticências iniciais nunca foram resolvidas e estiveram na origem dos futuros antagonismos que iriam existir entre os dois.
Passados meses uma grande parte da população de Lisboa começa a se insurgir contra a rainha e a apoiar o infante D. Pedro. Um conjunto de cidadãos, secundados pelo infante D. João, convoca uma reunião nos paços do concelho onde se defende que não era legítimo a entrega do poder a uma mulher e ainda por cima estrangeira.
Aprova-se então na câmara de Lisboa, no início de Outubro de 1439, um primeiro acordo que reconhecia que a divisão da regência entre a rainha e o infante D. Pedro estava a ser prejudicial para o país e, por isso, defendia que a governação fosse apenas exercida pelo duque de Coimbra. Os presentes “…aprovaram e puseram em escrito este acordo…” [8], que depois foi dado conhecimento aos infantes D. João, D. Henrique e D. Pedro, tendo este respondido com prudência “…para o que a mim cumpre tambem não posso fazer se não o que devo, que é d'este cargo não me antremeter assi absolutamente, sem meus irmãos e sobrinhos, e sem os procuradores dos tres Estados que para isso são chamados…” [9]
O infante D. Pedro começa a receber apoios de vários pontos do país para assumir sozinho a regência, ao mesmo tempo que se prepara para qualquer eventualidade ao reunir as suas forças militares. As hostes da facção da rainha, apoiadas pelo arcebispo de Lisboa, conde de Barcelos e a alta nobreza, também se movimentam, o que faz aumentar os receios de uma guerra civil.
Realizam-se conversações entre os dois campos com o objectivo de evitar a eclosão de um confronto militar e de manter as tréguas até à realização das próximas cortes em Lisboa, onde se encontraria uma resolução definitiva para o problema.
O segundo acordo, mais formal e com carácter vinculativo, foi aprovado nestas cortes em Dezembro de 1439 perante os representantes dos três estados e dos procuradores dos concelhos. Segue os princípios gerais do acordo aprovado na câmara de Lisboa: “Foi por todos geralmente consentido…, e aprovaram sem contradição o Infante D. Pedro haver só de reger, de que se fez um acordo…o qual acordo foi logo por todos ali assinado, salvo pelo conde de Arraiolos…” [10]
Como vimos o infante D. Pedro respondeu afirmativamente à questão “concorda com nós” colocada pela assembleia magna representativa dos conselhos do reino reunida para assinar um acordo que lhe atribuía a regência.
O pintor mostra-nos assim, utilizando a simbologia da corda, a celebração de um acordo onde os espíritos da união, paz e concórdia estão presentes.
Este painel representa não só a tomada simbólica do poder por parte do infante D. Pedro, mas também uma evocação da batalha de Alfarrobeira como podemos verificar pelo traje militar de algumas figuras e que desenvolveremos no capítulo seguinte.
[1] Cortesia Wikipedia
[2] Rebos: Jogo cujo objectivo é exprimir palavras ou frases por meio de
letras, palavras, números ou desenhos, cujos nomes produzam sons que se
assemelham o mais possível às palavras ou frases que têm que ser adivinhadas.
[3] CASTELLO BRANCO, Theresa Schedel de - Os Painéis de S. Vicente de Fora – As Chaves do Mistério, Lisboa,
1994, pág. 93.
[7] Veja-se a vara de comando, igualmente dourada, que D. Afonso V empunha
na tapeçaria de Pastrana que representa “O Cerco de Arzila”